a curiosa bio de david lynch e um passeio por curiosidades perto do fogo

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Espaço para Sonhar” (Editora Best Seller) é um misto de biografia e livro de memórias e reminiscências do artista David Lynch. Cada capítulo é dividido em duas partes: na primeira, a jornalista Kristine McKenna conta a história, tendo como base cerca de 100 entrevistas que fez com parentes, amigos e com o próprio Lynch; na segunda, temos Lynch comentando algumas passagens, colocando seu ponto de vista, contando algumas curiosidades e anedotas e, principalmente, revelando algumas de suas intenções.

Lynch é um sujeito misterioso, que realizou filmes misteriosos, e desperta muita curiosidade sobre tudo o que o envolve. Não está entre meus cineastas preferidos, mas sua filmografia acompanha minha vida desde que “Duna” (1984) e “Veludo Azul” (1986) chegaram às locadoras mais ou menos ao mesmo tempo em que “O Homem Elefante” (1980) chegava à TV aberta e “Coração Selvagem” (1990) chegava aos cinemas – fui ver no cinema, fiquei maluco, consegui um cartaz do filme e instalei-o do lado de dentro da porta do meu banheiro, então sempre tomava banho olhando para esse cartaz. Eu tinha 21 anos de idade, o cartaz ficou lá por uns 6 anos.

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Lynch nasceu em 1946 em uma família classe média e supernormal, com irmãos, indo mal na escola e fazendo traquinagens, participando do grupo de escoteiros e tal. Ele gostava de desenhar e um dia soube de um artista que ganhava a vida desenhando e pintando e aquilo mudou a vida dele, “como poderia ser capaz?”. Praticamente abandonou estudos e só queria desenhar e pintar e então ele pintava um dia e achou que algo aconteceu e os elementos na tela “se moveram” e ele achou que devia fazer cinema.

A história em “Espaço para Sonhar” mostra como as atenções de Lynch são flutuantes, como nada é muito programado e como ele segue quase que exclusivamente seu instinto, sendo quase um naif. Ele não tinha ido muito longe na pintura, não se interessava por estudar aquilo – e o mesmo aconteceu com o cinema: ele simplesmente queria filmar, começou a ter ideias e a juntar pessoas (seu grande talento), fez um curta e outro e todo mundo adorava David e seu jeito calmo e atencioso e ele recebeu um convite para a faculdade de cinema AFI.

Lynch não era um aficionado em cinema e se lembra de poucos filmes que tinha visto ou que o impressionaram até então, “O Mágico de Oz” (1939) e “Crepúsculo dos Deuses” (1950). Na faculdade, encantou-se com Fellini e “8 ½” (1963) passou a ser seu filme preferido.

Ele também nunca foi fã de drogas e bebe pouco, é o que chamamos de maluco de ar, oxigênio chapa o cara. Suas ideias malucas encontravam atenção dos professores e da direção da faculdade pois ele falava sobre elas com entusiasmo e calma. Tinha muita gente com ideias estranhas em sua sala, como Terrence Malick, Tim Hunter e Paul Schrader, por exemplo.

No final do primeiro ano do curso, Lynch já casado e com uma filha, recebendo uma mesada de 250 dólares do pai, tem uma ideia para um longa, chamado “Eraserhead”. Escreveu o roteiro de 21 páginas e não sabia bem como acabaria – então ele pegou uma Bíblia, encontrou uma frase que o iluminou e ele pensou: ‘É isso!”. Mas não lembra que frase foi.

Lynch estava com 25 anos e atormentou a AFI para patrocinarem o filme e então a faculdade deu 10 mil dólares e os galpões do fundo para que ele fizesse aquela maluquice. Um pessoal foi se reunindo em torno daquilo, Jack Nance foi um deles – o ator virou amigo, trabalhou em vários projetos de Lynch e morreu aos 56 anos depois que se envolveu em uma briga em uma loja de rosquinhas; um crime nunca solucionado.

“Eraserhead” caminhava lento, sempre com a ajuda de amigos; dois anos se passaram e não tinham filmado tudo ainda. Lynch parecia muito lento, filmando muitas vezes a mesma cena, preocupado com coisas pouco importantes. Em 1973 o diretor de arte que o ajudava em “Eraserhead”, o amigo Jack Fisk, arrumou emprego no primeiro filme de Malick, “Terra de Ninguém” – conheceu e se casou com Sissy Spacek. Fisk e Spacek deram cerca de 4 mil dólares para Lynch andar com “Eraserhead”.

Uma parte importante do filme era o som, que tinha um desenho específico na cabeça de Lynch. As pessoas com quem ele conversava e o pessoal dos estúdios da faculdade não entendia. Então ele conheceu um cara bastante esquisito, chamado Alan Splet. Foi um amor de esquisitices e “Eraserhead”, o primeiro filme real em que Splet trabalhou, sendo parceiro em vários projetos de Lynch. Apenas um ano depois que “Eraserhead” saiu, Splet trabalhou com Malick e ganhou um Oscar de edição de som por “Corcel Negro” no ano seguinte.

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[Splet, Lynch e Jack Nance, que estaria em todos os filmes do diretor, até sua morte prematura]

Em fins de 1973 o filme empacou, o casamento de Lynch estava mal, ele conheceu a Meditação Transcendental, parou de fumar e começou a entregar o Wall Street Journal para se manter, ganhando 48,50 dólares por semana, atirando os jornais de dentro de um Fusca. Segundo relatos, ele “transformou o ato de atirar jornais pela janela do carro em arte”.

Em 1974 as filmagens retomaram, juntaram algum dinheiro, Lynch escreveu a canção “In Heaven” (seu amigo Peter Ivers musicou e gravou – é a que está no filme), a coisa se estendeu por mais um ano e às vésperas de seu aniversário de 30 anos, Lynch estava montando o som com Splet. Os amigos acreditavam no projeto, Fisk pediu a um amigo 10 mil dólares para Lynch terminar o filme, que estava quase pronto uns meses depois. Foram cinco anos de sofrimento.

Quando o filme estava pronto, Lynch reuniu as 14 pessoas que tinham feito parte do filme desde o início no Hamburger Hamlet, em Sunset Boulevard, e deu uma porcentagem do filme para cada um de maneira vitalícia. Todos recebem cheques de direitos autorais do filme anualmente até hoje.

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[Recado que Lynch deixou para os pais quando o filme estreou]

Na noite de estreia, eram 26 pessoas. Na seguinte, 24. Algumas notas apareceram na imprensa marginal sobre o filme, que foi crescendo no boca-a-boca. Consta que os cineastas John Waters e Stanley Kubrick gostaram e convidaram pessoas a ver – algumas se conectavam com o filme a ponto de saber as falas de cor. Lynch estava vivendo numa cabana, com uma nova mulher e fazendo trabalhos de marcenaria, passando por dificuldades. Certo dia, viu uma torta de maçã holandesa na vitrine de um café, entrou, tomou um café, pediu um pedaço e “era tão bom, mas era caro, então não podia repetir”. Um pouco tempo depois, a situação dele seria bem diferente.

Sorte de elefante

Ao final do livro “Espaço para Sonhar”, Lynch se diz um sortudo – e é verdade: a história sobre como foi feito “O Homem Elefante” comprova isso.

Stuart Cornfeld dava um curso de direção de cinema na AFI e Anne Bancroft era uma de suas alunas. Anne apresentou Cornfeld para eu marido, Mel Brooks, que chamou o professor para ajudar no filme que rodava, “Alta Ansiedade” (1977). Durante as filmagens, Cornfeld conheceu o assistente de direção Jonathan Sanger. Sanger tinha que deixar os filhos com uma babá para poder trabalhar. A babá se chamava Kathleen Prilliman e ela namorava um rapaz, Chris de Vore, que tinha escrito um roteiro com um amigo, Eric Bergren, baseado num livro que ambos haviam lido, chamado “Very Special People”. A babá mostrou o roteiro para Sanger que gostou e o comprou por mil dólares. Sanger mostrou para Cornfeld, que tinha acabado de assistir “Eraserhead” e conhecia Lynch da AFI. Cornfeld pensou que talvez Lynch pudesse ser capaz de dirigir o filme. Ao mesmo tempo, Mel Brooks queria montar uma produtora, mas não tinha um bom projeto. Cornfeld mostrou o roteiro para Bancroft, que mostrou para Brooks, que gostou e achou que o filme tivesse a cara de Alan Parker. Cornfeld sugeriu então que Brooks assistisse a “Eraserhead” e, ao contrário do que Lynch, Sager e muitos outros esperavam, ele adorou o filme! Foi montada a Brooksfilms, Brooks e Lynch debruçaram-se sobre o roteiro e o filme foi feito. Como disse Lynch: lá estava aquele garoto de Montana dirigindo John Gielgud, Wendy Hiller, Anthony Hopkins e John Hurt. O filme teve 8 indicações para o Oscar, inclusive de melhor diretor. Foi o primeiro, melhor e mais bem-sucedido filme da produtora Brooksfilms.

Sorte: Kathleen Prilliman não fosse a babá dos filhos de Sanger ou se Anne Bancroft tivesse caído com outro professor e não Cornfeld na AFI, o filme não teria existido. Pelo menos, não desse jeito e com Lynch à frente do projeto.

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De repente, Lynch estava na cerimônia do Oscar concorrendo a duas estatuetas (também de roteiro), sentado ao lado de Scorsese e feliz por ver sua amiga Sissy Spacek concorrendo por “Carrie – A Estranha”. No páreo de melhor filme, estavam “Touro Indomável”, “Tess” (de Polanski), “O Destino Mudou sua Vida” (de Apted) e “Gente como a Gente”, que ganhou, dando o prêmio de direção para Robert Redford e levando também o prêmio de roteiro adaptado.

Lynch ia ser pai novamente, então deixaram a pequena cabana onde morava com a mulher e compraram uma casa na periferia de Los Angeles por 105 mil dólares. Apesar do sucesso de “O Homem Elefante” e dos convites que apareciam para novos projetos, eles ainda não estavam exatamente ricos. Mel Brooks ofereceu “Frances”, mas Lynch não quis. George Lucas ofereceu “O Retorno do Jedi” e ele se interessou, mas na reunião que teve com Lucas não se entenderam bem. Também ofereceram a direção de “Dragão Vermelho” – que acabou sendo dirigido por Michael Mann e é um dos meus filmes preferidos. Foi quando surgiu o gigantesco projeto de “Duna”, com produção de Dino de Laurentiis.

Lynch gostou do projeto de “Duna”, leu os livros, encontrou-se com o autor Frank Herbert – e a roda começou a girar, era muito dinheiro envolvido, um cast enorme, filmagens no México, complicações no orçamento, a mulher grávida longe, a fama bafejando no cangote… Com toneladas de material bruto, Lynch mudou-se para um pequeno apartamento onde passou seis meses editando o filme, cujo corte inicial foi de 5 horas. Não havia possibilidade de passar aquilo nos cinemas – e o filme foi “enxugado” para 2h17.

“Duna” (1984) não foi tão mal nos cinemas, mas tinha custado muito caro. De repente, a culpa pelo fracasso do projeto parecia ser do menino de ouro de Montana. Ele estava na maré baixa de novo, mas com muito mais dinheiro no bolso. O casamento tinha acabado e ele tinha um projeto que desenvolvia há anos: “Veludo Azul”.

Reunindo os amigos de novo

A melhor coisa sobre “Duna” foi Kyle MacLachlan: Lynch encontrou um amigo, alguém com a mesma vibração que ele, os mesmos gostos, o mesmo humor. Ele foi chamado para o projeto de “Veludo Azul”, assim como a amiga de tempos, Laura Dern, e o fotógrafo de “Eraserhead”, Frederick Elmes. Era um projeto barato, 10% do que custou “Duna” – cerca de 4 milhões de dólares. Como uma espécie de retribuição por ter entrado na barca furada de “Duna”, Lynch pediu dinheiro para Dino de Laurentiis – que deu.

No meio da escolha do elenco, surgiu a modelo Isabella Rossellini, por quem Lynch se apaixonou durante as filmagens, e Dennis Hopper, que vivia um inferno pessoal, tentando se manter longe do álcool e das drogas, topando qualquer trabalho que conseguisse. Os dois foram perfeitos para os papéis.

Durante a produção, surgiu também aquele que seria um dos mais fiéis parceiros de Lynch: o músico Angelo Badalamenti, responsável pela música de quase todos os outros projetos de Lynch.

Totalmente à frente do projeto, autor único do roteiro, com liberdade para as decisões artísticas, cercado de amigos, as filmagens foram agradáveis, fáceis e rápidas.

A montagem original de “Veludo Azul”, porém, foi de 4 horas – e então foi preciso reduzir pela metade. Reduzido, o filme foi muito mal na avaliação de público-teste (prática que estava se popularizando no início dos anos 1980). Lynch ficou desolado, mas Dino de Laurentiis disse: “Fodam-se! Estão errados. O filme é brilhante, não vamos cortar nenhum fotograma, vamos lança-lo assim como está. Os críticos vão adorar e o público vai comparecer”. O experiente produtor estava certo.

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Mais uma vez, Lynch foi indicado ao Oscar de diretor – única categoria em que “Veludo Azul” (1986) concorreu. Perdeu para Oliver Stone, que venceu também o melhor filme, com “Platoon”. Dennis Hopper concorreu a melhor ator coadjuvante, porém com outro filme: o esquecível “Momentos Decisivos”, de David Anspaugh.

Numa festa pós-Oscar, Lynch conheceu Elizabeth Taylor, que tinha entregue o prêmio para Stone na cerimônia do prêmio. Ela disse que tinha adorado “Veludo Azul”. Ele disse que ia adorar ter vencido o prêmio – não pelo prêmio em si, mas para poder beijar Taylor. A veterana atriz então tascou um beijo na boca de Lynch. Virou quase um hábito: as próximas duas vezes que se encontraram, beijaram-se.

Lynch estava enfim milionário, realizado, em um ótimo relacionamento com Rossellini e cheio de ideias na cabeça.

Se metendo onde não deve

1986 estava sendo um ótimo ano para Lynch e alguém apresentou um roteirista de TV a ele: Mark Frost. O projeto que eles deviam desenvolver era de um filme baseado na biografia de Marilyn Monroe escrita pelo Anthony Summers, “Goddess”. A sinergia com Frost foi total e logo eles estavam com o ótimo e explosivo roteiro pronto, com nome provisório de “Venus Descending”. Essa biografia de Marilyn é uma das minhas preferidas, saiu no Brasil, mas hoje é raridade, só encontrada em sebos. A história do roteiro, porém, implicava a participação de Bob Kennedy na morte de Monroe e a United Artists decidiu engavetar o projeto.

Lynch e Frost tiveram uma ideia para uma comédia, chamada “One Saliva Bubble” e a coisa andou rápido, Steve Martin e Martin Short envolveram-se e Dino de Laurentiis ia produzir quando a produtora do italiano decretou falência e fechou, botando fim a todos os projetos.

Na mesma época, começaram a acontecer exposições com os trabalhos artísticos de Lynch, alguns deles com indicação de Isabella Rosselini, que tinha ótimos contatos na Europa. Na Itália, passou um dia com Fellini, enquanto o mestre filmava “Entrevista” (1987). Lynch e Fellini nasceram no mesmo dia.

Ofereceram o filme “A Força do Carinho” para que ele dirigisse, mas ele recusou. Beresford dirigiu, o filme concorreu a 5 Oscars, ganhou 2: roteiro e ator (Robert Duvall).

Conheceu Roy Orbison, que tinha uma música na trilha de “Veludo Azul”, e decidiu produzir um disco do ídolo. Uma tarde, estava gravando com Orbison quando Bob Dylan e Bono Vox apareceram – foi quando Lynch percebeu que estava fazendo parte de uma faixa diferenciada do star system.

Lynch também fez uma participação como ator, ao lado de Rossellini, no filme “Zelly e eu” (Tina Rathborne, 1988) e criou uma série para TV, com Frost, chamada “The Lemurians” – que era muito doida e não foi adiante. Foi quando um amigo em comum disse que ambos deviam fazer algo na linha de “Veludo Azul”: dramas estranhos numa cidadezinha comum. Começava a nascer “Twin Peaks”.

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[Quem matou Laura Palmer?]

Mais uma vez, a coisa andou rápido: ele e Frost desenharam um mapa da cidade, estabeleceram o crime inicial e alguns personagens, já tendo em mente alguns atores, como MacLachlan, por exemplo. Apresentaram para a rede de TV ABC que gostou e encomendou o piloto.

Lynch sabia fazer cinema, mas não TV – há outro ritmo e dinâmica, menos pessoas, menos tempo, menos dinheiro. Foi feito um bom planejamento para que tudo pudesse ser reutilizado depois de gravado o piloto, caso a série fosse aprovada. Com mil ideias na cabeça, Lynch conheceu o anão Michael J. Anderson na boate Magoo, em Manhattan, e ficou encantado com sua habilidade de falar frases ao contrário e seu peculiar jeito de dançar – convidou-o para a série. Um dia, Lynch alugou um carro com motorista para ir a um evento em homenagem a Roy Orbison – e simpatizou com o motorista, que virou o vice-xerife Andy Brennan em “Twin Peaks” (Harry Goaz). Outro motorista entrou na vida de Lynch durante “Twin Peaks”: Deepak Nayar tinha chegado a pouco tempo nos EUA, vindo da Índia, onde tinha trabalhado em produção de cinema para a franquia Merchant-Ivory e estava procurando emprego na América. Virou chofer de Lynch e, depois, virou produtor de projetos de Lynch e até esteve à frente da produção de “A Estrada Perdida” (1997).

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A ABC aprovou o piloto e deu carta branca a Lynch e Frost. O seriado foi uma febre nacional e Lynch apareceu na capa da revista “Time” em outubro de 1990 como “o tzar do bizarro”. Em “Espaço para Sonhar”, Lynch diz que “Twin Peaks” é sobre Marilyn Monroe. “Cidade dos Sonhos” (2001) também. “Tudo é sobre Marilyn Monroe”.

Vários detalhes de “Twin Peaks” surgiram completamente ao acaso. O fato do agente Cooper ser favorável ao povo tibetano, por exemplo, foi porque o pai de Uma Thurman era amigo do Dalai Lama e Lynch o conheceu na casa da atriz meio que por acaso.

Lynch estava com muita coisa na cabeça, produzindo música e espetáculos, fazendo curtas e comerciais, e tinha um roteiro novo para filmar, não queria ficar preso a “Twin Peaks”: deixou a série nas mãos de Frost e roteiristas convidados, pegou Isabella e foi filmar “Coração Selvagem”.

Perto do fogo

Lynch é um neurótico obsessivo cheio de manias diversas e esporádicas – ou, como disse Mel Brooks, “tem a cabeça fodida”. Durante as gravações de “Coração Selvagem”, por exemplo, só entrava no set depois de rodar pela cidade com seu motorista fazendo numerologia com placas de carro e encontrar uma placa com as iniciais de seu nome, DKL. As letras não precisavam estar na sequência, mas quando estavam indicava que as filmagens daquele dia seriam ótimas. Somar placas de carros é uma mania de desde antes de “Eraserhead” e o número da sorte de Lynch é 7.

A ideia inicial por trás de “Coração Selvagem” era explorar a sexualidade de Laura Dern. Lynch achava a amiga muito sensual e ela tinha feito aquele papel de sonsa em “Veludo Azul”; Lynch queria incendiar a tela com a amiga, botar fogo no cinema. O livro de Barry Giford veio a calhar com um universo esquisito de personagens e muita violência. Lynch chamou os amigos e mais uma vez o lance era se divertir durante as filmagens. Só não foi uma delícia pois “Twin Peaks” tinha se transformado em algo muito grande, ele tinha que lidar com aquilo também, e havia muito trabalho.

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Colocar um dos atores mais quentes do momento, Nic Cage, foi uma sacada, já que o personagem tem uma pegada Elvis Presley e Cage adora imitar o Rei. Willem Dafoe tinha feito um teste para o personagem que acabou com Dennis Hopper em “Veludo Azul” e Lynch queria trabalhar com ele – foi um Bobby Peru perfeito.

Filme pronto, mais um casamento acabado: Lynch estava tendo um caso com uma amiga, Mary Sweeney, que trabalhava em seus filmes desde “Veludo Azul”. Isabella ficou arrasada, diz que levou anos para superar o rompimento.

E então, Lynch subiu outro degrau no star system cinematográfico: “Coração Selvagem” (1990) levou a Palma de Ouro em Cannes. Bernardo Bertolucci presidia o júri e Lynch estava sentado ao lado de Federico Fellini. O filme certamente seria um sucesso. Não foi bem isso o que aconteceu.

Antes de ser lançado comercialmente nos EUA, fizeram duas sessões-teste e as pessoas saíam horrorizadas do filme, especialmente na cena final. Nesta cena, a cabeça de Harry Dean Stanton era explodida e havia uma espécie de catarse de sexo e sangue e o público não suportava aquilo. Os produtores disseram que gostavam do filme, era mais um “filme estranho de David Lynch”, mas também não suportavam o final. Lynch cedeu: chamou a amiga Sherryl Lee (Laura Palmer) e filmou a cena com a Bruxa Boa de “O Mágico de Oz”.

Ainda assim, nem público nem crítica gostaram muito do filme, que mal se pagou. Lynch tinha chegado muito perto do fogo e tinha se queimado.

A segunda temporada de “Twin Peaks” estava sendo um fiasco, a ABC quis que a resposta para a grande pergunta “Quem matou Laura Palmer?” fosse ao ar o mais rápido possível. Quando o crime foi solucionado na metade da segunda temporada, a série foi por água abaixo.

Talvez Lynch tenha se sentido culpado pelo distanciamento de “Twin Peaks” e tinha coisas que ele não havia conseguido transmitir na série – por isso, seu próximo projeto ainda tinha Laura Palmer como personagem principal.

Correndo atrás do próprio rabo

Um dos ataques que “Coração Selvagem” sofreu foi de autoparódia – e Lynch devia desconfiar que fazer um filme no universo de Twin Peaks ia dar na mesma acusação.

Mas talvez, para ele fosse só uma oportunidade de estar mais uma vez entre amigos. Chamou todos amigos quanto foi possível, inclusive um recente: David Bowie. As filmagens foram suaves e, desta vez, mais afinado com o mundo musical, Lynch decidiu contribuir com Badalamenti na trilha – trabalharam juntos, do zero. Um dia, estavam gravando e a canção precisava de uma improvisação vocal e Badalamenti decidiu fazer – ele não canta. Durante a gravação da voz do amigo, Lynch riu tanto que teve uma hérnia e precisou ser operado rapidamente.

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Parece que “Twin Peaks – Os Últimos dias de Laura Palmer” (1992) não interessou a ninguém. Indicado em Cannes, suscitou apenas um comentário de Quentin Tarantino: “Ele se acha tanto que não tenho a menor vontade de assistir a outro filme de David Lynch”. No NYT, Canby escreveu: “Não é o pior filme do mundo. Mas parece”. Revi-o recentemente e devo dizer que gostei muito mais dele agora – mas jogue os primeiros 33 minutos no lixo; aquele começo é ruim, não serve para nada e Chris Isaak é um péssimo ator.

Neste ínterim, alguns outros projetos de TV foram desenvolvidos sem grande repercussão. Parecia que Lynch tinha perdido o toque de Midas e seu frescor. E ia ser pai mais uma vez.

Lynch estava dirigindo clipes, curtas, comerciais, pintando, expondo, construindo móveis, escrevendo roteiros (tinha um projeto para fazer “A Metamorfose”, de Kafka), participando de filmes coletivos e comemorativos… Comprou os direitos de outro livro de Barry Giford, “Night People” e teve uma ideia de um videocassete que chegava à uma casa de um casal revelando algo assustador.

Ele estava ganhando dinheiro como nunca e tinha entrado de cabeça na coisa da Meditação Transcendental, viajando para divulgar as ideias do Maharishi Mahesh Yogi – mas não havia uma grande ideia para um filme.

Um dia, o interfone de sua casa tocou, ele atendeu e alguém disse: “Dick Laurent morreu” – e desligou. Ele foi olhar e não encontrou ninguém do lado de fora. Depois, estava conversando com Barry Giford e comentou sobre uma cena que lhe tinha ocorrido: você conhece alguém em uma festa e a pessoa te diz que está na sua casa naquele momento. Giford gostou, juntaram outras peças soltas e iniciaram o que seria “A Estrada Perdida”.

Nem todos os antigos amigos estavam disponíveis para o novo projeto, mas alguns novos queriam fazer parte do filme que resgataria Lynch. O estilo empregado nas filmagens não agradou a todos: o roteiro era escrito enquanto o filme era feito, parecia algo sem sentido, não se sabia o que estava acontecendo. Mas Lynch estava confiante como nunca.

Ele foi a um show do Portishead com David Bowie, que teve participação em “Twin Peaks” e queria o amigo no filme, mas não encontrou um papel para ele – colocou uma música do amigo na abertura.

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Outros caminhos

“Estrada Perdida” (1997) não estava pronto quando Jack Nance morreu. Além de amigo, Nance estava presente de alguma forma em todos os filmes de Lynch. Foi algo surreal: alcoólatra que deixava e reincidia na bebida, tinha bebido quando foi tomar café numa loja de rosquinhas às 5 da manhã e arrumou encrenca com dois sujeitos que bateram na cabeça dele. Ele dormiu e morreu. Tinha 56 anos.

Havia um clima surreal ao redor de Lynch, que estava se afastando da esposa. Todo o clima foi refletido no filme, durante a edição, mas ele ficou feliz com o corte final. Chamou amigos, entre eles, Marlon Brando, para uma exibição. Brando elogiou: “é um filme muito bom, mas não vai render um tostão!”. Ele estava certo.

As críticas se dividiram. O filme não faturou 10% do custo no primeiro mês, os cinemas não queriam exibir, o público não estava a fim de ver mais um espetáculo sem pé nem cabeça de 2 horas de David Lynch. Já havia a internet, os DVDs, “A Estrada Perdida” parecia uma diversão desencaminhada para aquele momento. Eu vi no cinema e é meu filme preferido de Lynch.

[Interregno]

Aí teve “História Real” (1999), que era um projeto da mulher de Lynch, Sweeney com um amigo. Ela estava escrevendo o roteiro e mostrou ao marido, que acho a história bonita e quis filmar. A amiga Sissy Spacek veio para o projeto, assim como Harry Dean Stanton e o fotógrafo Freddie Francis (em seu último trabalho) – e tudo caminhou de maneira agradável. Badalamenti compôs uma trilha diferente do habitual, com temas tipicamente americanos. O filme foi a Cannes, Lynch foi indicado para o prêmio de diretor – perdeu para Almodóvar com “Tudo sobre Minha Mãe”. A edição de Cannes em 1999 foi presidida por David Cronenberg e polêmica em seus prêmios.

O grande trunfo e espírito de “História Real” é Richard Farnsworth, veterano ator e dublê, que lutava contra um câncer enquanto fazia o filme. Foi a única indicação do filme para ao Oscar, Farnsworth foi o ator mais velho a ser indicado até então – tinha 79 anos, perdeu para Kevin Spacey em “Beleza Americana”.

Meses depois, Farnsworth se matou com um tiro.

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[Farnsworth com Spacek]

Ainda na estrada

Alguém questionou se a TV não seria o ambiente mais favorável a Lynch – e um novo projeto nasceu: “Cidade dos Sonhos” seria uma série que seguiria os passos de duas aspirantes a atriz em Hollywood, uma dando suporte para a outra, desviando de todas as armadilhas da profissão e do comércio.

Lynch mapeou a série toda e sabia de onde partiria e onde chegaria – pela primeira vez tinha algo realmente estruturado. Começaram as escritas de roteiro, tratativas e encontros. Outros amigos, ainda lembrando-se de “O Homem Elefante” e até de “História Real”, questionava se Lynch não iria melhor com um projeto já definido, com roteiro de outra pessoa, sem tantas esquisitices. Ofereceram “Beleza Americana”, mas ele não quis filmar – Sam Mendes dirigiu e o filme ganhou 5 Oscars. Também acharam que o remake de “O Chamado” tinha a cara dele, mas ele disse não – pouco depois, o filme foi o campeão de bilheteria no ano, com Naomi Watts, que tinha acabado de filmar “Cidade dos Sonhos”.

Algumas emissoras demonstraram interesse pela nova série de Lynch – ele então foi gravar um piloto e Laura Harring apareceu em seu caminho. Ela tinha sido Miss América e feito algumas poucas coisas na TV e cinema. Lynch achou-a perfeita para o papel principal de “Cidade dos Sonhos”. Resumindo muito a história, ninguém botou fé naquilo e depois de muita encrenca e confusão, ele filmou outras sequências e reescreveu o roteiro para montar um longa-metragem com o material. Nascia o filme “Cidade dos Sonhos” (2001).

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Lynch acreditava naquele material e lutou pela integridade dele. Em Cannes, o filme deu a ele o prêmio de melhor diretor – que ele dividiu com Joel Coen com “O Homem que não estava lá”. Quando o filme concorria no Festival de Toronto, as Torres Gêmeas caíram em Manhattan e nada mais seria como antes.

O foco de Lynch foi para a Fundação David Lynch para a Educação e a Paz Mundial com Base na Consciência – que foi finalmente concretizada em 2005.

“Cidade dos Sonhos” estreou no final de 2001 nos EUA e Lynch foi indicado mais uma vez a melhor diretor no Oscar do ano seguinte. Perdeu para Ron Howard e seu esquecível “Uma Mente Brilhante”.

O Oscar chamou a atenção para o filme, que teve ótima bilheteria na Europa. Hoje, é considerado um dos melhores e mais importantes do século XXI.

Prioridade em arte e meditação

No início do século XXI aconteceram muitas modificações na indústria do cinema, nas comunicações, com os ambientes digitais, handcams digitais, a internet, a globalização. Lynch caiu nas experimentações em vídeo, aprendeu usar computador, Photoshop, comprou uma câmera Sony PD150, continuou pintando e construindo móveis, gravando e produzindo discos, realizando exposições, divulgando sua Fundação, palestrando sobre meditação, escrevendo sobre meditação.

Lynch foi presidente do Festival de Cannes em 2002 e entregou a Palma de Ouro para “O Pianista”, de Roman Polanski.

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[A obsessão por Laura Dern teria inspirado Laura Palmer?]

Agora, a amiga Laura Dern tinha virado sua vizinha e eles estavam juntos e filmavam o tempo todo. De uma série de improvisos e pequenas cenas gravadas, nasceu “Império dos Sonhos” (2006), filme mais impenetrável, metido a artístico e difícil de sua carreira como diretor de longas (existem curtas dele mais difíceis que esse longa, claro). Lynch voltaria a projetos de cinema e TV apenas dez anos depois, em 2016, com a “terceira temporada” de “Twin Peaks”.

Na fase de preparação de “Império dos Sonhos”, Lynch separou-se de Sweeney e se casou com Emily Stofle, vinte anos mais nova que ele. Teve também uma filha, Lula. Lynch sempre amou fumar e sua imagem se relaciona com cigarros, mas ele ficou longos períodos sem fumar. Depois de alguns bons anos longe dos cigarros, possivelmente relacionou seu distanciamento do cinema com a falta de fumar e voltou com tudo: no Natal de 2012 pediu de presente apenas cigarros aos amigos. Ele voltava a se encontrar com Mark Frost para “Twin Peaks – The Return”.

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Com o passar dos anos, Lynch construiu um complexo com três casas interligadas; comprou as duas casas vizinhas à sua e montou ateliê, estúdio de gravação de música e um canto só para ele – onde pode ficar sozinho, meditar, ler e, principalmente, fumar. Emily e Lula ficam na casa maior e ele neste espaço que, aparentemente é pequeno – há uma cama de solteiro, onde ele dorme. Não há muitos móveis, não recebe quase ninguém ali: há guimbas de cigarros pelo chão e ele faz xixi na pia; há um telefone antigo de parede (que ainda funciona) e um notebook.

David Lynch recebeu um Oscar honorário pela contribuição ao cinema americano em 2020.

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[MacLachlan, Dern e Rossellini no Oscar de Lynch]

A Fundação David Lynch criou vida própria e recebe dinheiro de boa parte dos ganhos de seu idealizador, atuando em diversas frentes e tendo uma atuação especialmente importante em diversas regiões dos EUA neste momento de coronavírus.

Uma figura, esse David Lynch. Mas um cara do bem.

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“Espaço para sonhar” tem 600 páginas de David Lynch e uma parte da história do cinema americano de seu auge nos anos 1970 até 2020 e muitas, muitas curiosidades incríveis, como você pode ver no textão acima – mesmo para quem não é muito fã do cinema de Lynch, como é o meu caso. Ao longo da leitura, anotei algumas curiosidades curiosas (sic) como essas abaixo:

Curiosidades:

– O personagem de Lynch em “Twin Peaks”, Gordon Cole, é o nome do homem da Paramount Studios que liga para Norma Desmond em “Crepúsculo dos Deuses” (Wilder, 1950). Lynch tem uma teoria sobre como Wilder criou o nome: quando se vai de carro até os estúdios da Paramount passa-se pela Gordon Street e pela Cole Street.

– O personagem Bob, que é a influência do mal em “Twin Peaks”, não estava no roteiro original. Em um dia de filmagem na casa dos Palmer apareceu o reflexo do produtor de arte da série, Frank Silva, em um espelho. Lynch gostou, chamou Frank e perguntou se ele era ator – ele respondeu que sim e o personagem foi criado.

– Um dia, sem aparente motivo, Marlon Brando foi visitar Lynch em sua casa. Lynch ofereceu café, mas Brando queria algo para comer. Lynch só tinha um tomate e uma banana; Brando sentou-se no chão, pediu um prato e sal, comeu o tomate e a banana e foi embora.

– Em 2014, Lynch participou do “Desafio do Balde de Gelo” e recebeu dois baldes na cabeça, de Laura Dern e Justin Theroux, enquanto tocava “Somewhere Over the Rainbow” no trompete. E desafiou Vladimir Putin para o desafio.

É isso, pessoal. Que o fogo caminhe com vocês!

🙂

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3 thoughts on “a curiosa bio de david lynch e um passeio por curiosidades perto do fogo

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