IOGA, DE EMMANUEL CARRÈRE

Ok, os jornalistas literários fizeram isso: colocaram-se dentro das histórias que eles mesmo contavam, como se fossem personagens. Mas Emmanuel Carrère faz isso de um outro jeito, ele criou uma maneira de se colocar visceralmente diante do seu objeto de estudo, escrita e investigação, seja um assassino nacionalmente famoso, seja um poeta russo louco e revolucionário, seja sua própria fé cristã – ele escreve, ao mesmo tempo, sobre seu assunto e sobre si mesmo, sobre suas obsessões, suas dúvidas, suas crenças e descrenças e isso torna seus livros confessionais e, ao mesmo tempo, amplas reportagens, no sentido mais investigativo do termo. Não por acaso, Knausgard o considera “o mais instigante escritor vivo”, como está na capa brasileira de “Ioga”, novo livro do francês que sai agora aqui pela Alfaguara.

Existem três tipos de leitores para esse “Ioga”: o fã, que, como eu, conhece a pegada do sujeito e vai embarcar com ele em mais essa trip confessional/jornalística (sendo que, dessa vez, é ele mesmo o objeto de seu estudo); o desavisado, que pode achar que Carrère é uma espécie de Houllebecq, um ficcionista criativo antenado com sua geração e narrador clássico (Carrère não é isso); e aquele que pode pensar que o livro é uma reflexão profunda sobre seu tema/título, a ioga. Pensando sobre isso, cheguei à conclusão que os três tipos de leitores podem realmente ter em “Ioga” uma boa experiência, já que o livro é dividido em três partes e cada uma vai certamente agradar a cada um deles.

A primeira parte fala de Carrère indo para um retiro onde deve passar dez dias em reclusão total, apenas meditando, sem livros, sem conversar, atingindo uma espécie de ápice da ioga que ele pratica há muitos anos. Há muito sobre ioga e tai chi nessas primeiras 100 páginas. No quarto dia, porém, ele é retirado de lá por causa do atentando ao Charlie Hebdo e, então, ele vê descambar sua sanidade mental, chegando ao ponto de ser internado e passar por eletrochoques. Essa é a segunda parte, onde fala da loucura dele e é a parte que vai interessar aos superfãs, como eu (ainda mais se forem escritores). Já a terceira parte, conta sobre Carrère tentando reconstruir sua sanidade mental sendo voluntário em um programa de imigrantes em uma ilha grega. É a parte que vai agradar os fãs de Houllebecq.

Em nenhuma das seções, porém, falta a obsessão de Carrère pelos temas que esquadrinha, num mergulho no tema e, ao mesmo tempo, em seu próprio umbigo. Há quem diga que todos os temas são supérfluos diante do grande tema de suas obras que é ele mesmo – mas acho que aqui é que a coisa fica interessante: quanto um autor pode ser franco, honesto, sincero e verdadeiro consigo mesmo e com seus leitores? Quais serão os pensamentos, as dúvidas existenciais, os dilemas morais, a visão de mundo, de um homem branco francês burguês, bem-sucedido em sua empreitada de ser um grande escritor? E Carrère não mente quando diz que busca única e exclusivamente a verdade.

Dito isso, recomendo não só o “Ioga”, mas todos os livros de Carrère.

“O Bigode” é seu romance inaugural de ficção, com a história de um sujeito que raspa o bigode e ninguém percebe, nem mesmo sua mulher. Ele entra numa piração e talvez ele nunca tivesse mesmo um bigode. Virou um ótimo filme, dirigido pelo próprio Carrère.

“O Adversário” conta a história real do falso médico francês que matou toda a família e tentou se matar, sem sucesso, virando, depois, confessor de Carrère – é o “A Sangue Frio” do francês.

Em “A Colônia de Férias”, “Um Romance Russo” e “Outras Vidas que não a Minha” são exercícios de autobiografia em que Carrère discute e pensa a vida contemporânea na França e na Europa a partir de pontos de vista diferentes.

Meus três preferidos são: “Limonov”, que conta a história do revolucionário russo que vai para os EUA nos anos 1960, vai pra França, vira figura cult, acaba candidato a vice-presidente da Rússia, uma história maluca e inacreditável que teve Carrère como espécie de observador ocasional; “Eu Estou Vivo e Eles Estão Mortos”, a biografia de Philip K. Dick, que foi uma obsessão para Carrère por mais de uma década – e o livro é, também, sobre essa obsessão; e “O Reino”, a crise de fé que o levou de volta e depois de revolta para o cristianismo – revelando uma de suas outras obsessão: a história de Paulo de Tarso, que é esmiuçada no volume.

Bom, não faltam motivos para você ler o sujeito.

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