Luis Capucho Abissal

Na tela e no teatro, obra de Capucho fala sobre a estranheza do mundo, a dificuldade de inserção, o amor subreptício.

Cinema Orly” foi para o teatro, 24 anos depois de ser lançado, em curta temporada no Teatro Glaucio Gill de Copacabana. Diogo Liberano foi o encenador corajoso que adaptou o premiado & pornô-gay livro de Luis Capucho. Trata-se de uma peça experimental que faz de cada apresentação um espetáculo único e que certamente vai para outros palcos na sequência.

Já “Peixe Abissal” roda por festivais e é mais acessível, pero no mucho; é o ensaio poético realizado por Rafael Saar sobre Capucho, de quem é fã. Sim, é um experimento visual que tem como base os livros semi-autobiográficos de Capucho, realizado por alguém que claramente conhece e admira a obra daquele que investiga e expõe. Trata-se de um filme de longa duração, com quase duas horas, que pode parecer interminável para quem não conhece o assunto – no caso, Luis Capucho, cantautor, escritor e artista plástico. Aí é que está o problema: o filme não é uma obra para capuchófilos nem para neófitos – fica no meio do caminho.

Entende-se por capuchófilos aqueles que conhecem seus livros, seus discos, sabem sobre o trabalho artístico dele e sobre boa parte de sua história. Para esses, o filme tem cenas bonitas, ilustrativas, belas encenações que contam com o próprio Capucho, conseguindo estabelecer conexões interessantes entre as realizações do artista. Porém, um filme que desejasse celebrar o artista para seus fãs, não usaria, por exemplo, de versões de outras pessoas para as canções dele – aliás, o desfrute e a compreensão do cancioneiro capuchiano passa, no meu entender, intrinsecamente pela performance do cantor, com sua voz única e obliterada. Os capuchófilos também iriam gostar de ouvir um pouco mais da voz do objeto do filme, no caso, o próprio Capucho, comentando e/ou elucidando pontos obscuros de sua obra. Seria um deleite para fãs. Não acontece em “Peixe Abissal”.

Um documentário mais formal talvez também fosse satisfatório para os capuchófilos – e teria a vantagem de ampliar o público do artista. Certamente, muita gente boa daria depoimentos para um filme que tivesse uma intenção mais integrativa. O viés artístico poderia ser mantido; Saar, o diretor, se esmera e consegue cenas realmente bonitas e envolventes; elas podiam emoldurar um documentário mais expositivo, que levasse Capucho a mais gente – mas “Peixe Abissal” parece mais afastar o neófito em Capucho do que causar interesse nele. Na sala onde assisti, um cidadão, sentado ao meu lado, demonstrou enfado em diversas ocasiões.

É que Luis Capucho não é um artista simples, normal. Como já escrevi antes, trata-se de uma voz originalíssima tanto na literatura como na música, que tem sua produção alinhada com sua própria vida e cujo deleite do público acontece através do conhecimento de alguns detalhes da sua biografia. Como dizia Bertrand Russel, conhecer a origem do abricó, torna a fruta mais doce. A premissa se amplia no caso de Capucho.

Capucho nasceu em 1962 em Cachoeiro do Itapemirim (ES), cidade que deu Roberto Carlos e Sérgio Sampaio para a música, mas também Luz del Fuego, Rubem Braga e Carlos Imperial para as artes. E talvez não fosse demais dizer que Capucho parece uma fusão desses cinco cidadãos cachoeirenses. Ele deixou a cidade, mudando-se para Niterói para cursar Letras na UFF. Vivendo no limite da pobreza, morou com a mãe em cortiços enquanto estudava e frequentava inferninhos, andando pelo caminho selvagem – para citar Lou Reed, a quem é comparado. A mãe lavava e passava roupas para terceiros e, em uma ocasião, um cliente pagou com um violão. Foi quando Capucho aprendeu a tocar e compor.

O show de 1995, que pode ser baixado em seu site, mostra seu trabalho inicial, que chamou alguma atenção. A voz é suave e as músicas remetem ao Caetano Veloso dos anos 90. Em 1996, porém, Capucho teve uma crise convulsiva violenta, uma neurotoxoplasmose em decorrência da baixa imunidade por HIV, que o deixou em coma durante um mês, afetando sua coordenação motora e sua fala. Ele ficou sabendo da AIDS apenas depois de acordar do coma. Mal recuperado e sem conseguir tocar, dedicou-se à literatura como forma de recompor sua memória e treinar a coordenação motora, escrevendo à mão em uma agenda velha. Compôs, assim, Cinema Orly, um romance confessional recheado de sexo homossexual, lançado em 1999, que venceu um prêmio de Direitos Humanos.

O amigo e parceiro musical, Marcos Sacramento, teve importância vital na retomada musical de Capucho, estimulando-o. De maneira consciente, Capucho incorporou suas limitações e sua nova realidade às canções, que se tornaram mais rudes, com o violão mais batido, espancado, a voz grave, rouca e uma estranheza abrasiva. Segundo o próprio Capucho, “foi um grande prazer ver que minha capacidade criativa estava intacta”.

As canções do “novo” Capucho foram reunidas em seu primeiro disco, Lua Singela, de 2003. É o disco que tem “Maluca”, que seria gravada por Cássia Eller, e “Máquina de Escrever”, parceria com Mathilda Kóvak, que teria versão de Pedro Luis e a Parede. A figura estranha, de fala desarticulada e olhos esbugalhados, começava a chamar a atenção de fato.

Foi nesta época que, por uma dessas obras do destino, me vi sentado em um evento, na cidade de Limeira, com Capucho. Falamos de literatura; nós dois tínhamos escrito livros e buscávamos editoras. O dele, Rato, saiu pela Rocco em 2007. É seu melhor trabalho até agora: o relato semi-autobiográfico, realista mas poético, de um rapaz e sua mãe vivendo em uma cabeça-de-porco, ambos rodeados por homens estranhos.

A mãe de Capucho, dona Luzia, é personagem real e importante como figura no imaginário do artista, presente na literatura e em canções. Em 2012, numa retomada algo triunfal de uma carreira que parecia permanecer apenas no âmbito marginal, Capucho lançou o romance Mamãe me Adora, sensível, de moldura profundamente gay e escrito num impressionante rigor formal; e Cinema Íris, o álbum de canções inéditas que parece não ter semelhante na discografia nacional – e uma das canções é, justamente, “Eu Quero Ser Sua Mãe”, uma possível projeção de como Capucho deseja ser amado. A mãe, dona Luzia, morreu em 2009, enquanto assistia à transmissão do carnaval pela TV e o Império Serrano desfilava com o enredo “A Lenda das Sereias – Rainhas do Mar” – fato ressaltado nas entrevistas que Capucho dá, mitificando ainda mais a mãe.

A voz gutural de Capucho costuma gerar comparações com Tom Waits – mas nada mais equivocado. Waits também começou com uma voz suave e afinada, mudando de registro subitamente, como Capucho. A mudança na voz de Waits, porém, vendida como “o resultado de anos de álcool e cigarro em bares esfumaçados”, parece ter mais a ver com o estudado marketing que envolve o músico, coordenado por sua esposa e empresária, Kathleen Brennan. Não se trata de algo natural, como o que aconteceu a Capucho.

O equivalente americano de Capucho, para mim, é Vic Chesnutt, o músico de Athens, Georgia, que ficou paraplégico e sequelado depois de um acidente de carro e construiu sua carreira em cima da sua condição física precária e da dificuldade de tocar – e que morreu em 25 de dezembro de 2009, depois de uma overdose de relaxantes musculares. Capucho e Chesnutt cantam as mesmas coisas: a estranheza do mundo, a dificuldade de inserção, o amor subreptício; a visão própria e sombria da realidade, calcada na subjetividade intrínseca.

Capucho faz, hoje, de maneira verdadeira, esse tipo de arte pessoal e profunda que muitos procuram realizar sem sucesso. Não tem o gosto plastificado de escritores que emulam os marginais, tentando parecer Bukowski e congêneres. A estranheza de sua música ressoa sua realidade; não é artificial ou forçada. Por toda essa autenticidade é que é importante falar de Capucho e trazê-lo à tona.

“Peixe Abissal” celebra o Capucho Abissal e talvez possa ser melhor digerido depois dessa breve apresentação desse artista incrível.

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